sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A Escalada do Nevado Ishinca, por Rafael Guerra

A turma reunida na partida para a caminhada até o campo base.

Em julho deste ano, na região da Cordillera Blanca, próxima à Huaraz, Peru, após 5 caminhadas de 1 dia e de passar 4 dias no incrível Trekking Santa Cruz – Llanganuco, eu já estava mais do que satisfeito pelo sucesso alcançado nesta temporada. Principalmente pelo peso de, no ano anterior, ter sido forçado a abandonar de forma dramática o trekking de Huayhuash no segundo dia por conta de uma infecção e de dificuldades na aclimatação. Mas no objetivo deste ano do nosso grupo, formado por mim, Fábio Fliess, Gilmar Oliveira, Alessandra Hambrick e Evandro Costa, também estavam incluídas as escaladas dos nevados Ishinca e Urus.

O nevado Ishinca (5530m), com grau de dificuldade considerado moderado, está situado em uma Quebrada que leva o seu nome, no Parque Nacional Huascarán, a cerca de 2 horas de carro da cidade de Huaraz. O campo base fica a 4400m de altitude e para alcançá-lo é necessário percorrer uma fácil e absolutamente linda trilha de 15km. A área do campo base é muito ampla e é cortada por um córrego de água limpa, formada pelo degelo dos glaciares dos nevados Tocllaraju e Ishinca, o que garante um ótimo suprimento de água; há sempre por ali os que eu chamaria de “camelôs de altitude”, camponeses que diariamente montam suas barracas para a venda de artigos de primeira necessidade como refrigerantes e cerveja… um luxo em uma região tão inóspita! Por fim, quebrando o clima da paisagem, há o controverso Abrigo Ishinca. O Abrigo Ishinca é um alojamento com ótima infraestrutura. Oferece banho quente e eletricidade solar; cama, café da manhã e jantar por US$ 35 e cama, café da manhã, almoço e jantar por US$ 49. É uma boa opção para quem viaja solo e deseja reduzir o peso da mochila.

Abrigo e zona de aclimatação Ishinca.

Esse campo serve de base para as escaladas do Urus Leste (5420m - Moderada), Ishinca (5530m - Moderada); Tocllaraju (6274m - Difícil) e o Ranrapalca (6162m - Difícil). Vale mencionar que as duas últimas montanhas citadas normalmente necessitam de um acampamento avançado e mais de um dia de escalada para que o cume seja alcançado.

No dia 18 de julho, às 11 horas da manhã, começamos em Cochapampa a caminhada para o campo base. A vista daquele ponto é impressionante: você olha para a frente e vê no centro da paisagem a entrada da quebrada com suas paredes colossais que mais lembram um grande canyon; à esquerda, o Nevado Copa (6188m), que se destaca por seu extenso glaciar e à direita o Vallunaraju (5686m) e o Oshapalca (5881m).

Da esquerda para a direita: Ishinca, Ranrapalca e Oshapalca vistos do cume do Urus.

Caminhamos em um ritmo forte por 2km até começarmos a entrar na Quebrada Ishinca, quando então a trilha adentra por uma floresta de Quenuais. Bem mais a frente fizemos uma parada no posto de controle do Parque para nos registrarmos e aproveitamos para um rápido lanche. Nesse posto de controle é necessário apresentar o ingresso do parque ou comprar um por S/.65 Soles, caso você ainda não tenha. Como esse ingresso é válido por 1 mês, uma boa dica é guardá-lo bem, de preferência junto ao passaporte.

Seguimos percorrendo a trilha pela floresta, sempre margeando um rio, que é o mesmo que passa pelo acampamento base, mas que ali já está com um volume de água maior devido às contribuições dos glaciares do Oshapalca e do Vallunaraju, até sairmos em um campo. Nesse momento eu reparei que a turma havia ficado para trás. Começou a nevar bem fraquinho, a temperatura caiu e eu lembrei que a minha parka havia ficado na parte da bagagem que estava sendo levada pelos burrinhos. Continuei caminhando, cuidando para não aumentar a minha distância para o resto da turma mas quando vi que eles estavam vestindo os seus abrigos, por conhecer os detalhes da trilha e por saber que eles estariam bem, resolvi dar uma acelerada para procurar uma proteção caso a situação se agravasse. A trilha começou a subir, a nevasca a aumentar e a temperatura a despencar mas naquela altura eu já estava apenas a 1 km do acampamento.

Quando enfim cheguei na área do acampamento o meu chapéu estava encharcado, mas a jaqueta, hidrorepelente, aguentou a barra numa boa. A notícia ruim é que não havia acampamento montado porque eu havia chegado antes dos burrinhos com a nossa carga. Consegui abrigo com 3 senhores peruanos que estavam por ali vendendo coisas para os montanhistas acampados. Fiquei ali por uns 30 minutos, debaixo daquele abrigo improvisado com pedras, galhos e lona, “confortavelmente” sentado em um banco-pedra, que me foi gentilmente oferecido, bebendo cusquenã e sendo sabatinado sobre o desastroso desempenho da nossa seleção de futebol na Copa do Mundo até que todos chegaram. Acho que eram umas 16h quando conseguimos entrar nas nossas barracas enlameadas. Era hora de descansar para a grande aventura que se aproximava.

Dormi por algumas horas e quando acordei para o jantar a neve havia parado de cair mas o céu estava completamente nublado, o que colocou em xeque a escalada do dia seguinte. Combinamos de partir do acampamento às 3h da madrugada caso o tempo estivesse aberto e fui dormir tranquilo confiando que isso aconteceria. Algumas horas depois, acordamos sob um céu estrelado. Tomamos um gostoso café da manhã preparado pelo cozinheiro e porteador Frael; nos equipamos e partimos atrasados às 3h40, praticamente correndo com as botas duplas para alcançar o nosso guia Alberto Hung, que ia "voando baixo" na trilha para tentar compensar o nosso atraso. Como sempre, eu fui o último a deixar o acampamento. Segui bem atrás do grupo em um ritmo muito mais lento, tanto pela minha obsessão em administrar energia quanto porque sentia dificuldades em caminhar com as botas duplas. Eu escolhi um modelo da Asolo que pesa 1,1 kg cada pé. Isso somado a rigidez do calçado, a cada passada eu imaginava que rolaria trilha abaixo. Estava satisfeito pelos meus amigos estarem seguindo bem e conformado para o caso de eu ter que desistir do cume.

Há uns 300 metros do nosso acampamento, encontrei o Gilmar, a Alessandra, o Frael e o Alberto conversando preocupadamente.

A temperatura era de -10ºC e a Alessandra, que estava com muito frio, resolveu retornar dali mesmo para o acampamento, sendo seguida pelo Gilmar, que é seu marido, e pelo Frael.

Quando continuamos a caminhada eu já estava praticamente adaptado às botas e começava a caminhar com mais desenvoltura e consegui manter um ritmo suficiente para acompanhar o Fábio, o Evandro e o Alberto. Seguimos subindo por mais 3 horas e paramos para um breve descanso sob o Sol que já começava a nos aquecer. Nesse momento o Evandro comunicou que não faria o cume porque estava preocupado em não ter forças para o retorno. O Fábio resolveu ficar com ele porque estava sentindo um sono absurdo e nos contou que estava enfrentando problemas para dormir. Após avaliarmos a situação, considerando que os dois estavam bem, relativamente protegidos do vento, sob o calor do Sol e com bastante comida e água, Alberto e eu decidimos seguir em frente e combinamos que eles nos esperariam naquele ponto. Caminhamos por mais uma hora até atingirmos o início do glaciar aonde nos encordamos e calçamos os crampons. Eram aproximadamente 8 horas da manhã quando começamos a atravessar o glaciar um pouco abaixo do colo entre o Ishinca e o Ranrapalca, local usado como acampamento avançado para a escalada do Ranrapalca. A progressão era lenta por causa da altitude e do peso de quase 1 kg e meio de cada bota com o crampon instalado. Seguimos lentamente, evitando as gretas e contemplando a paisagem. A neve que caíra sobre o glaciar estava marcada com extensos rastros de raposas que passaram por ali durante a madrugada. A parte mais complicada foi no início da subida da pirâmide do cume, bem mais íngreme do que o resto do glaciar. Naquele ponto a adrenalina de começar a acreditar que o sonho ia se realizar foi o que continuava me impulsionando. Alguns metros antes do cume foi necessário fazer uma escalada mais técnica inclusive pra superar uma pequena greta na parede do cume, que acabou sendo usada como degrau.

No cume do Ishinca. Em segundo plano, o Ranrapalca.

Quando enfim cheguei ao cume, às 10h40min, meu coração parecia querer sair pela boca de tanta adrenalina. O meu primeiro nevado me trouxe uma felicidade indescritível.

Eu estava frente-a-frente com as montanhas mais lindas do lado sul do Parque Nacional Huascarán. Tocllaraju, os dois cumes do Urus, Copa, Churup, as 3 lindas lagunas azuis na base da face norte do Ishinca, já na Quebrada Cojup. Montanhas que até então eu só havia contemplado como turista, a partir do terraço do Hostal em que nós estávamos hospedados. Posso dizer que aquele “terraço” onde eu estava era muito mais emocionante.

Tiramos várias fotos, filmamos e rapidamente iniciamos a descida devido a umas nuvens negras que se aproximavam rapidamente.

Visual a partir do cume do Ishinca.

Chegamos de volta ao campo base Ishinca às 14h, após 10 horas e vinte minutos da mais pura ralação! Bem a tempo do almoço com os meus amigos!!!

Que venham as próximas escaladas!

5 comentários:

Professora Carla Nogueira disse...

Parabéns pelo blog e pelas dicas... Amei seu guia da Roteiro de Aventura! Pretendo fazer Quebrada Santa Cruz em Julho. Suas fotos me animaram bastante!
Bjs e Boas Viagens!
www.expedicaoandandoporai.blogspot.com

Rafael Guerra disse...

Obrigado Carla. "A casa" é simples mas cuidamos "dela" com muito carinho.
Não sei se você conhece a região... se precisar de alguma ajuda para a Cordillera Blanca é só falar.
Estou escrevendo sobre várias caminhadas de 1 dia que vocês podem fazer por lá, para se aclimatarem. Em breve publicaremos.
Parabéns pelo seu blog. Certamente vocês tem andado muito por aí.
Abraço,
Rafael

Professora Carla Nogueira disse...

Verdade Rafa! Andamos bastante. hehehehe. Legal a idéia de publicar o guia de caminhadas de 1 dia para aclimatação. Estou apaixonada pelo trabalho de vcs... Parabéns de novo e obrigada pela visita lá no nosso cantinho...
Bjs e Boas Viagens!

Michel disse...

Opa! Que irada essa aventura hein?? Eu nunca encarei algo assim, tenho que assumir que sou meio cagão com essas paradas.. acabo tendo respeito demais pelo frio e pela montanha que não sei se um dia encararia um lance assim.. mas com certeza deve ser uma experiência indescritível!
Os locais devem ser uma atração a parte, são quase sempre gente muito simples mas muito gente boa!
E que venham as próximas escaladas por aí! :D
Abraços e bom fds!!
Michel
www.rodandopelomundo.com

Rafael Guerra disse...

Oi Michel!
Realmente os desafios da montanha não são brincadeira. Por isso a minha opção foi treinar muito e ganhar experiência aos poucos, com humildade, aumentando o nível de dificuldade das escaladas e tendo sempre em mente que desistir e voltar do meio do caminho é questão de responsabilidade.
Sobre os locais, cara, posso dizer que me diverti muito e deixei umas boas amizades por lá. Tem cada história... rsrs
Forte abraço!